
Seria hipócrita dizer apenas que escrevo não para mudar o
sentido do mundo mas para que o sentido do mundo não me mude a mim.
Por mais que alguém o queira negar, quem escreve não escreve
só para si, para quê escrever o que estamos sentindo se por vezes, pelo menos eu,
tão pouco consigo exprimir o que sinto e se o sinto que necessidade tenho de o
por no papel?
No meu caso eu terei que voltar aos meus tempos de criança e
ao momento em que sai do útero da minha mãe com um irmão siamês. Este meu irmão,
embora siamês é um gémeo falso, em tudo igual a mim, mas sem corpo, apenas alma.
Eu sou quem detém o pensamento e o coração ele a alma e
o espírito eu sinto as emoções e os sentidos ele a aura e os sentimentos que
não se explicam.
Quando era criança ele acompanha-me sempre para a escola,
era praticamente o único que estava comigo. Enquanto os outros meninos
brincavam à bola, nós ia-mos par o recreio brincar ao faz-de-conta.
Eu falava e fala exaltava-me
com os meus cinco sentidos, tudo o que via, ouvia, tocava, cheirava ou provava
eram situações de grande excitação para mim, principalmente quando algo era
novo e queria, numa maneira muito infantil e meio desajeitada, tentar
transmitir toda aquela emoção para ele.
Ele não falava, ou melhor falava, mas não tinha sentidos,
falava com o seu silêncio com a sua alma e nessas alturas, eu parava para o
ouvir e quando eu não entendia alguma coisa ele acaba sempre por se explicar
através do seu silêncio e tudo aquilo que eu não conseguia na realidade ver
podia senti-lo através dele. Tudo o que eu não compreendia nem podia alcançar
com os meus sentidos, eu sentia dentro dele essa compreensão.
Era ele quem se deitava comigo todas as noites e me
segregava ao ouvido: faz um soninho descansado que eu vou sonhar para ti. Todo
o dia eu ansiava a noite para me ir deitar ao seu lado para continuar em sonhos
os sonhos dos dias anteriores que eram sempre intermináveis. E para não me esquecer comecei a escrever.
Apesar de já ser homem bem crescidinho nunca separei o cordão
umbilical que foi comum aos dois e sempre nos uniu. Era através dele que a sua
alma comunicava com ao meu coração com o seu silêncio. O meu corpo, agora,
ganhava outras formas, outras exigências, vícios e tentações e os meus sentidos
mais bem preparados e apurados entraram na fase de desconfiança e questionavam
a existência do irmão siamês já que não conseguiam encontrar mas ninguém com um
irmão assim e houve então um período de grande depressão que atirou ambos para
uma crise existencial.
Havia falsidade,
inveja, ambição desmedida, enfim um inúmero de males sociais, por vezes, que eu
também o diga, a pare com algumas boas pessoas. Mas o facto é que a generalidade
das pessoas, as formas das coisas e a vida iam perdendo a sua inocência e tudo
parecia ser explicado pela ciência e os males da sociedade acabavam por ser aceites
como situações normais adquiridas nesta vida, como se um mal necessário se
tratasse.
Dai ter surgido a necessidade de comunicar com ele de novo, sempre fomos uns tagarelas os dois, mas tudo
ficava ali entre ele e eu e como nada era escrito, apenas os sonhos eram lembrados e por vezes havia a duvida do
disse que disse ou sentiu que sentiu então pensamos que era melhor ser escrito, por linhas mestras,
não na sua total integridade, já que era impossível materializar os sentimentos
e vice-versa.
Assim, de vez em quando lá nos lembramos que precisamos de escrever o que
somos e discutimos, sim porque nós somos siameses
partilhamos muitas sensações, mas como quaisquer outros gémeos siameses, temos
as nossas diferenças, um é todo materialista e já o outro é todo espiritualista.
A maior diferença talvez que existe entre os dois é que, por
vezes, eu firo os sentimentos dos outros, pensando que posso ser dono das suas
existências no momento, sem ontem ou amanhã, vivendo e entregando-me ao presente,
enquanto ele é o passado e o futuro pouco intervêm no meu presente e fica
sentido com as minhas acções, mas eu digo-lhe sempre em tom de brincadeira:
«isso é porque tu não tens corpo!» Logo ao que ele responde: «e tu não tens alma».